
Se eu te perguntasse qual aplicativo mais faturou dinheiro no Brasil em 2019, o que provavelmente você responderia? O Tinder e suas inúmeras maneiras de facilitar a busca por um “contatinho”? Talvez o Netflix, maior plataforma para assistir a vídeos conectados a nuvem? Em todos esses chutes você estaria redondamente errado.
Eu também estive. Na realidade, me senti um extraterrestre desconectado da realidade quando descobri que esse posto era de um jogo para celular chamado Free Fire.
Descoberta que veio de um jeito inusitado e que me deixou assustado pela sua dimensão completamente fora do meu horizonte. Um clipe da música “Zé Guaritinha”, lançado em dezembro no canal do Kondzilla em que MC Jotappê, na companhia do maior rapper da história do país, Mano Brown, versavam coisas como “Quer falar comigo, me chama mais tarde. Porque agora eu tô jogando Freefire. Sou top global, tô no nível hacker.”
O Free Fire foi lançado em 2017. No jargão gamer é um “battle royale”. Tipo de jogo em que dezenas de usuários entram em um cenário (chamado de mapa) com o objetivo de matar seus oponentes. O último sobrevivente vence. Para conseguir itens especiais e ser mais competitivo é preciso gastar dinheiro.
As Batalhas rápidas, quase sempre de menos de dez minutos, o download gratuito da versão básica, o fato de não consumir muitos dados de 4G e estar acessível em celulares simples fizeram o jogo se popularizar nas periferias. Como tudo aquilo que viraliza nessas camadas, era natural que virasse assunto de suas músicas.
O nome da canção de Jottapê e Mano Brown é a prova. “Zé Guaritinha” é uma expressão usada para o jogador que passa a maior parte do tempo escondido, sem “coragem” de ir para os locais abertos onde a troca dos tiros virtuais é intensa.
O rapper, por sinal, foi bastante criticado nas redes sociais por estar rimando sobre algo “fútil”, o que não se encaixaria em seu histórico combativo. Emicida, um dos compositores da música, saiu em sua defesa no Twitter: “Brown é visionário. Free Fire é #1 entre as camadas menos abastadas da população. Conectou os novinho, trouxe a raiz, camisa 10 sagrada no século 21. Se eu fosse vocês, prestava atenção e tentava aprender alguma coisa”.
“Zé Guaritinha” é só a ponta do fenômeno. No Youtube, há milhares de streams — como são chamadas as gravações de atuações no jogo — em que a trilha sonora é o funk. Sejam eles conhecidos do grande público, que estão bombando em determinado momento, ou músicas feitas sobre o jogo por cantores menos conhecidos. O youtuber e MC Quick Irônico, por exemplo, tem mais de 5 milhões de views no seu “Funk do Rushadão”, expressão dada a quem joga de maneira agressiva, tomando sempre a iniciativa do combate.
A Garena, empresa de Cingapura que publica o jogo, está atenta à popularidade que ele ganhou no Brasil. Além de lançar a Liga Brasileira de Free Fire com transmissão do Sportv, publicou cenários chamados de Santa Catarina e Brasília e transformou o Dj Alok em personagem. Ele não foi o primeiro “brasileiro” no jogo. O avatar “Miguel” veio antes, no fim de 2018. Uma espécie de alto oficial do Exército brasileiro, que quando incluído no jogo estava a cara do Capitão Nascimento. Pouco tempo depois a Garena atualizou seu rosto, mas manteve o brasão verde e amarelo. Eu não duvido que logo menos um MC de funk pinte nos cenários virtuais mais populares pelas periferias do Brasil.